Poema do menino Judas, de Fábio Gondim


 

poema do menino judas


no meio duma noite fria e chuvosa,

passando bêbado pela rua da velha rodoviária,

vi o vulto duma criança a se debater suspensa no ar:

a corda no pescoço 

sustentada por um gancho na marquise.


pedi ajuda aos que ali nos cantos moravam

e estarrecido notei sua indiferença.

responderam aos sussurros

que o garoto fazia aquilo todo dia,

que após os espasmos adormecia 

no embalo do vento gelado

e sempre na manhã seguinte

era retirado por alguém que ali passasse.


pasmo,

resgatei o menino e o pus em meus braços.


quando voltou a si a primeira reação

foi meter suas mãos nos bolsos

e entregar-me trinta siclos prateados.


antes que eu recusasse,

balançou a cabeça.

em seu olhar quase soberano fez-me aceitar a oferta.

disse ser assim que tentava

se livrar das duas dúzias e meia de dracmas,

mas que sempre tornavam em seu bolso

no dia seguinte.


era o menino judas iscariotes

e descera à terra na tentativa

de devolver os trinta dinheiros aos homens.


contou-me que durante o dia

fazia pequenos furtos pra comer algo,

que nunca aceitavam suas pratas,

mas que as usava pra comprar cola ou crack

e que quando aspirava a fumaça

em sua latinha de coca,

notava que mesmo entregando todas as moedas,

elas sempre estavam lá.

fartava-se de drogas de toda sorte.


apanhava todos os dias dos outros meninos da rua que sem razão aparente

lhe batiam com violência,

mas sempre cuidando para que não morresse.

dizia que era como se há séculos

vivesse um enforcamento sem fim.


trazia chagas por todo o corpo e feridas na boca,

o que fazia-lhe falar com dificuldade e dor.

ainda que arrependido

de pôr a vida de seu amigo a termo,

também estava irritado

dizendo que o pai desse amigo

o havia escolhido para dar cabo ao serviço sujo.

não entendia por que o mandante estava livre.


ofereci meu colo para que continuasse sua estória.

espantado,

de pronto se aconchegou em meu peito.


comecei a passear a mão entre os cachos

endurecidos pela sujeira das ruas

e a contar-lhe a estória que ainda não sabia...


que seu amigo havia se safado no terceiro dia,

que vive em todos os corações,

no dele inclusive

e que é infinito em misericórdia e perdão.


o pequeno judas adormeceu

com um sorriso nos lábios.

aos poucos foi falecendo diante dos meus olhos.

as moedas que me dera agora eram trinta caramelos

e seus bolsos permaneciam vazios.


Fábio Gondim


(baseado na obra de Fernando Pessoa)

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