Uma partida de xadrez no terraço do Hotel Gaspar


 

Na época eu tinha 14 anos. 

O ano era 1966.

Eu entregava jornal na esquina da Rua Calógeras com a avenida Mato Grosso, em frente ao Hotel Gaspar. O Hotel havia sido inaugurado 12 anos antes pelo imigrante português Antônio Gaspar, e por se localizar em frente à Estação Ferroviária, seus quartos eram disputadíssimos. Me lembro das pessoas pulando o muro da Estação para poder chegar antes ao hotel e garantir ao menos uma pernoite.

Naquele dia, um hospede estrangeiro, com sotaque latino, forçando um “portunhol”, assoviou e me chamou do terraço do hotel:

_FIIIIIIIIIUUUUUU! Ei garoto! Sabes jugar xadrez? 

Fiquei olhando e pensando se era comigo mesmo que ele estaria falando. Foi quando o gringo insistiu:

_ Suba aquí! Venha logo!

Eu não sabia jogar xadrez, mas fui mesmo assim. Sempre quis entrar no Hotel. Lembro que me admirei de ver os largos corredores e até demorei para chegar ao terraço onde estava o homem.

Chegando lá ele foi logo me chamando para sentar na cadeira do lado oposto do tabuleiro já com todas as peças posicionadas. Tive que informá-lo que eu não sabia jogar xadrez.

_ Aprendi aos 12 años _ disse ele. Inclusive já participei de vários torneios na Argentina _ completou.

_ O senhor é Argentino? _ perguntei.

_ Não me considero mais “só Argentino”. Soy um cidadão da América Latina.

_ Como assim?

_ Certa vez, viajei em minha moto cruzando países como Bolívia, Peru, Equador, Colombia, Panamá, Costa Rica, El Salvador, Guatemala, visitei índios e leprosos, e percebi que a América não puede ser dividida, ela precisa ser uma entidade única. Por isso, comecei por mim! Não me considero mais Argentino, sou um Latino-Americano, lutando contra o Imperialismo dos Estados Unidos.

_ E sendo uma pessoa tão importante assim, veio fazer o que em Campo Grande? _ perguntei rindo.

_ Estoy partindo em uma viagem para a Bolívia meu jovem. A única salvação para a pobreza que vi quando cruzei a América é a implantação do comunismo. Começarei por lá!

_ Comunismo?

_ Sim, garoto! O Comunismo visa la igualdade entre os membros de toda uma sociedade. Não haverá mais divisão de Classes, rico e pobre, por exemplo.

_ Mas será que funciona?

_ Claro! No año de 1954, no México, conheci dois irmãos e os ajudei a derrubar o governo apoiado pelos Estados Unidos lá em Cuba e implantamos o comunismo. Discursei até na ONU e fui condecorado por Jânio Quadros com a Grã Cruz da Ordem Cruzeiro do Sul. Então, deixei Cuba e fui até o Congo tentar implantar meus ideais. Fracassei! Não conhecia muito bem lá. As tribos, cultura, tudo muito diferente, mas tenho certeza na Bolívia dará certo! _ disse ele com entusiasmo, estufando o peito, erguendo um pouco o queixo, virando levemente o rosto para a esquerda e olhando ao horizonte, como que se fizesse pose para foto.

_ Mas mesmo com esse ideal todo de igualdade o senhor escolheu se hospedar em um dos melhores hotéis de Campo Grande?

_ Ah! Cala boca guri! _ respondeu ele se desfazendo da daquela pose e me dando um tapa na cabeça. _ Um dia você verá meu rosto estampado nos jornais que você entrega. Serei o homem que ajudou a implantar o comunismo na América-Latina. Agora vá! Amanhã parto logo cedo.

Adorei aquela conversa e principalmente o seu carisma idealista. Fui embora, como ele pediu, sem sequer mexermos uma peça no tabuleiro de xadrez. 

Já no hall do hotel, lembrei que não havia perguntado o seu nome, mas fui impedido de voltar.

Um dia, no final do ano de 1967, vi a foto daquele homem no jornal, mas não como ele dissera. Vi sua foto morto, rodeado por generais e embora sujo, descabelado, com a barba bem grande, o reconheci.

Corri até o Hotel Gaspar!

_ Senhor Antônio! Senhor Antônio! Veja aquele estrangeiro que se hospedou aqui! _ disse esbaforido.

_ Não me lembro da fisionomia dele! _ respondeu o Português.

_ Eu me lembro, tenho certeza! Veja os registros! O nome dele está aqui na manchete do jornal!

_ Não! Não há nenhum Ernesto que se hospedou neste Hotel _ retrucou o sr. Antônio Gaspar, vasculhando as fichas dos antigos hospedes.

Sentei na sombra da árvore, que hoje ocupa o canteiro central da avenida Mato Grosso, bem de frente ao Hotel Gaspar, e comecei a ler a notícia. Chorei quando vi que junto com aquele homem que havia sido morto, foram encontrados vários passaportes e documentos falsos, que provavelmente um deles, foi usado para registrar sua hospedagem no Hotel Gaspar.


Rafael Sampaio

Comentários

Postagens mais visitadas