Pescador de Sol, conto de Tânia Souza

 


Pescador de Sol

Seu Antonho era gente boa. Eu não sabia, mas era. Certa feita, mostrei-lhe a língua, pois com aquela seriedade toda, observando o entardecer com tanto tento ele conseguia era me atentar. Não resisti, mostrei a língua e me mandei. Ele contou pra mãe, que me fez pedir desculpas.  Não queria, mas relho da mãe era dos trançados sabe? Melhor vergonha que dor. Mas não fui só; Zezo, meu vizinho e amigo das artes, foi comigo.

E assim descobri que Seu Antonho era gente boa. Da lida no fogão a lenha, fazia doces;  também uns peixes assados que o mar lhe dava com amor. Só pescava a noite, o homem. Um caniço fininho de dar dó. Quando um dia falamos em lhe dar um caniço novo, ele não quis. Dizia que era de amor e senso o material daquele, que estimava e não se falava mais nisso.

Nem vô nem vó lembravam quando ele chegou, a mesma vara de pescar de sempre. O mesmo remo. A mesma solidão. Barquinho pequeno, noites longas. Nem filhos, nem amores, nem nada. 

Gostava era de prosear e dizia que além da pesca, buscava um aprendiz. E foi assim que descobri que meu pai, antes de sumir no mar, também ouvira as aventuras de um mar mais gigante que os anos das gentes na terra.  Das coisas que Seu Antonho dizia de Sol e Mar, guardei:

- Dos tentáculos dos monstros que, valente, não teve medo nunca; 

- Das sereias, que chorava largado de saudade e paixões que só os doudos conheciam. 

- Do dia em que os homens, quando ainda eram peixes, quiseram espiar o Sol e largaram as águas e por isso mesmo, Mar e Sol vez em quando fazem pesca de avesso, não deixam que voltem todos não. 

- Que sua lida consistia em ser um pescador de amanhecer. (Um pescador de amanhecer? E era?).

- Que para pescar o Sol, era preciso ter pele grossa, curtida feito couro das sereias e coração de pedra, pois era luz por demais para suportar na alma.

E coisas outras que inventei. Mas só sei que uma tardinha, Seu Antonho espiava o mar quando de repente, se levantou. Entortou o caniço, ajeitou a linha fininha e falou que já era hora de remar em outras águas. Que era preciso um outro pescador de amanhecer. Que seu primo, remador de outras águas, viria lhe buscar. Nesse barco, outro remo lhe caberia. Eu temia o mar e toda aquela luz que as histórias do Seu Antonho prometiam. Não queria sina de pescar nem peixe, nem mar, nem sol. Gostava mesmo era gravar palavra falada no vazio do papel. 

Mas os olhos de Zezo brilharam e ele dizia que para essa empreitada, coragem tinha. O velho pescador concordou. Olhou dentro de meu olho e falou dos que pescam com palavras, um outro tipo de Sol. 

Naquela noite, sonhei-lhe. Pequeno e feliz no meio das águas, ele jogava o anzol e assim vagaroso e com amor, o Sol vinha surgindo na linha do olhar. Era uma beleza de vermelhos, amarelos e azuis tanto tanto que acordei chorando. 

Seu Antonho sumiu, Sol também não veio.  Por dias e noites, o mar, as ruas e as casas ficaram cinzas e tristes, e o vento balançava as portas e janelas e os barcos dançavam. Só neblina e frio. Até que um dia, o barquinho voltou. Sozinho, sem vara de pescar, sem remo, sem Seu Antonho. 

A noite chegou e, de caniço fininho e novo, Zezo se apossou do barquinho e se foi ao mar. Sei não do que se passou. Mas dia seguinte, Sol brilhava lindo. Até palavra de gravar o dia esqueci. Fui brincar infância em onda e mar, cousas que não tem precisão explicar.

Era tempo de viver e só.


Tânia Souza


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