Senhora, conto de Tânia Souza


 

Senhora

 

O cheiro agridoce se espalha e desperta a curiosidade da criatura. Esguia, ela se move. É suave o ar por onde desvenda o caminho, procurando o aroma, deslizando por troncos e cicatrizes das velhas árvores. 

Senhora, percorre seu reino em silenciosa busca. Sob ela, a imagem refletida nas águas claras sibila memórias, dores e saudades tecidas em fiapos de quase nada.

Houve um tempo que decidiu conhecer melhor o bicho-homem: despiu-se da ofídia pele e mulher, caminhou por aldeias e cidades. Amou, foi amada e até mesmo filhas, criaturas tão especiais como ela, deixou nestas terras. 

Chamaram-na mulher, mãe, bruxa; xamã, feiticeira, benzedeira; louca, encantada. Ensinou aos homens os segredos da terra, das águas e das plantas. Em noites sagradas dançava ao luar.  

Mas em tempos de dores, é sina humana culpar a mesma mão que um dia, deu cura e pão. E ela também aprendeu a dor das injustiças e, quando o mundo ainda engatinhava, soube que não mais ensinaria aos seres os segredos da vida. Mesmo assim, andava entre eles quando os dias lhe pareciam bons; depois, envolvia-se novamente na ofídia pele e seguia pelas matas.

Quando o sono chegou e, enrodilhada em solidão, buscou nas águas fresco ninho. Não viu quando o sol feriu a terra, ela dormira por eras. Foram as árvores que lhe contaram o que houve no reino dos homens. 

De vez em quando, as árvores despertam e sopram palavras que o vento trata de espalhar; nessas horas, a criatura paira e aprende a linguagem dos séculos: primeiro, as águas subiram. Depois, a terra bebeu com a sede dos séculos. Quando as árvores foram ceifadas, veio o deserto, o frio, a noite, a seca e, finalmente, moléstias que viajavam pelo ar roubaram dos homens o direito à morte. 

Para ela, é indiferente. Quando tem fome, caça. Quando tem sono, sonha.  É rainha das matas e ruínas. A febre que tomou o bicho-homem não afetou as feras. Poucos são os homens que ainda vivem, lutando entre si e contra os não-vivos e devagar, seus resquícios abandonam a terra.

Por isso, antes do cheiro agridoce, ela reconhece outro invasor: a criatura que rasteja sobre as águas não é mais um ser vivente. Ela se lembrava do cheiro quente que um dia, o bicho-homem teve. Sem medo, ela observa o não-vivo que rasteja grunhidos e a podridão, em fome eterna. 

Passos ecoam na mata. Há luta e perseguição, e o cheiro do sangue convida outras criaturas rejeitadas pela terra.  Passos ofegantes à margem do rio. 

Nem sempre, é preciso ir até a caça. 

O cheiro quente do filhote chega até ela. A beira d’água, o menino para, espiando a cobra gigantesca que desliza entre as árvores, beijada pelo sol. Sem pressa, a rainha se aproxima enquanto o medo paralisa a criança. Ele sabe que não adianta gritar por socorro. De um lado, os não-vivos; de outro, seus captores. A coragem enche o peito frágil e ele suspira, resignado, frente aos olhos da serpente.

Mas hoje, a rainha não tem fome, para sua sorte.  Não a fome que come lembranças e dá lugar a predadora. Recua e, com leveza, desvia da criança. Reconhece a história de medo e coragem que o filhote respira. 

Por alguns instantes, o menino comemora a liberdade e logo, continua a sua desesperada caminhada pela sobrevivência. Ainda assim, por uns instantes, olha nos olhos da gigantesca serpe. 

A rainha não tem pressa para herdar a terra. Com curiosidade, observa o caminho que a criança seguiu. Não sabe se um dia, voltará a vê-lo. A cada dia, menos homens caminham sobre a terra. 

Quando as árvores despertarem, contará a elas que alguns homens ainda vagam e estiveram por perto. Depois, quando as árvores voltarem a sonhar, ela reinará serena. 

Senhora de todas as coisas, rainha da terra e das águas. 


Tânia Souza 

Do livro Estranhas Delicadezas, 2017


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