Tarja Preta entrevista: Tânia Souza

 


Encerrando nossa série de quatro entrevistas, quem senta do divã do Tarja Preta é a escritora Tânia Souza, natural de Bela Vista/MS vive atualmente em Campo Grande/MS. É professora, poeta e escreve poesias, literatura para infância, contos que passeiam pelo insólito, ficção cientifica e realismo fantástico. Atualmente, é colaboradora da Revista Fantástica Caligo e participante dos grupos de leitura Vórtice Literário e Leia mulheres. Participou por três anos do site de literatura fantástica Quotidianos; também foi uma das editoras da Revista Digital Zzzumbido; Publicou, anteriormente, os livros Entre as rendas dos ossos e outros sonhos desabitados (poesia), Um gato no jardim (literatura para infância) Bichinhos da horta (literatura para a infância), Estranhas delicadezas (contos) e Desamores e outras ternurinhas (poesia). Participou de antologias de poesia e prosa com temáticas diversas. Em 2021, produziu o curta de animação “A bruxinha”, com roteiro adaptado do e-book “Era uma vez”, contemplado pelo Prêmio Leia MS da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul (FCMS). O curta está disponível no youtube e explora os possíveis caminhos do medo e o poder transformador da arte e da imaginação. 

Microficções e outras fantasmagorias poéticas é o sétimo livro de Tânia Souza, sendo o volume 33 da III Coleção de Livros de Bolso do Mulherio das Letras. Essa coleção é organizada pela escritora e editora Karine Bassi, Editora Venas Abiertas. Um livro de contos e poemas que passeiam por temas como o amor, morte, violência, fantasmas e viajantes espaciais. Haicais encontrados no caderno de um viajante espacial, fantasmas ou alucinações plenos de sentimentos, robôs perdidos em universos decadentes, viagens no tempo, estrelas que devoram estrelas atraídas pela cozinha de uma abuela na fronteira e outras micronarrativas são alguns dos textos deste pequeno livro de bolsa. Também nas ilustrações, feitas por Diana Pilatti, aparece essa mescla de tecnologia e elementos da natureza, um contraste que perpassa todo o livro.

 



1. Conte um pouco sobre você e sua trajetória profissional, a professora e a escritora.

Foi a admiração pela palavra me levou para a formação em Letras, para o caminho da educação, principalmente no que se refere ao universo da leitura e da escrita. Acredito muito na força da palavra e percebi que mostrar essa possibilidade sempre foi um movimento circular, de ensinar e aprender. Já escrevi inspirada por momentos em sala de aula, vibrei com alunos que entenderam o uso da linguagem na construção das ideias, me emocionei vendo a produção literária de ex-alunos e também por compartilhar o amor pelos livros e seus universos.  A escritora sempre esteve aqui, atenta aos sons, as variações da linguagem, as múltiplas possibilidades de se contar e se encantar com uma história, uma poesia. 


2. Por que escrever? O que torna a literatura importante para você?  

Escrever é um ato de liberdade. De usar a palavra para vencer o silêncio, para inventar mundos, para expressar sentimentos que nem sempre entendemos ou verbalizamos. A literatura como arte da palavra é a que permite espanto, medo, risadas, alegria, raiva, nojo, ternura, amor. Pois dentro de um texto existem mundos inimagináveis e de repente, existe a possibilidade de imersão nestes universos. Especialmente para mim, que comecei a escrever junto com a luta contra a depressão, a literatura não vem como cura, nem solução, mas sim como um caminho pleno de significados. Para bagunçar e logo, reorganizar tudo novamente. 


3. Fale um pouco sobre seus processos de escrita? E quanto a inspiração foge, quais táticas usa para retomar as rotinas de escrita?

Certa vez, eu defini esse processo como caótico, desde então, penso que essa palavra sempre irá me acompanhar. A escrita é caos e cais, perdoem a aliteração. Quando estou plena de ideias e sugestões, anoto, gravo, digo para quem está ao meu lado. Depois, é preciso reunir, alinhavar essas pontas. Nem sempre é fácil.  A minha inspiração vem de tudo. Paisagens, cenas do cotidiano, uma melodia, uma frase, uma imersão em outras formas de artes. E aprendi a buscar esses impulsos criativos quando escrever se torna difícil, dolorido. Eu preciso ver um pouco do mundo para escrever novos mundos. Vivencio a realidade de muitas outras autoras, que é compartilhar a escrita com outras formas de trabalho, de escrever em horários alternativos, preocupada com inúmeras questões. Escrevemos durante a noite, acordando mais cedo pelas manhãs, esperando um ônibus, trocando momentos com a família ou amigos pelo contato único com a palavra, pois escrever é mais que uma vontade, é uma necessidade. Ler outros autores, caminhar, andar pelas ruas, ficar em silêncio, pesquisar sobre temas variados, buscar rimas aleatórias, tudo isso é material de composição.


4. Sabemos que muitos livros vieram antes de “Microficções e outras fantasmagorias poéticas”, há algo em comum entre os livros anteriores e este lançamento? Já consegue definir-se um estilo próprio?

Eu sou movida pela curiosidade pela palavra, pelas possibilidades narrativas, pelas sugestões. Acho que há um tom sombrio ou melancólico em comum nestes livros. Mas eu nunca busquei ou pensei nisso. Eu gosto de capturar um som, sentir o prazer criativo de escrever, reescrever inúmeras vezes. Mais que contar histórias, eu gosto de escrever cenas, como se as palavras pintassem um determinado momento narrativo e ali estivessem vários pontos para se olhar. Por isso eu escrevo poesia, haicais, contos (de terror, de amor, fantásticos ou insólitos) escrevo literatura para a infância, escrevo crônicas.

Justamente por ter um olhar atento a vários gêneros literários, comecei escrevendo poesia, com temas românticos, amorosos, góticos. Me apaixonei pelo minimalismo do haicai e do poetrix, principalmente a ligação entre o haicai e a natureza. Em seguida, meu gosto por causos e contos, que teve origem lá na infância, me motivou a escrever contos de terror. Por quê? Existe dor demais nesse mundo. Eu escrevo o medo para espantar o medo, pela catarse, como metáfora para as sombras que se movem. Também gosto de escrever contos insólitos, fantásticos, passear pelo universo feminino. A mulher que escreve, que cria, inventa mundos me fascina como personagem, como inspiração, como luta. A ligação com a natureza retorna com os bichinhos da horta, com a observação do espaço, dos seres, do tempo. 

A minha poesia tem nuances narrativas, a minha prosa é recheada de poemários. 


5. Durante a leitura do livro, é possível identificar várias referências ao universo fantástico e das narrativas de horror. Há um motivo especial para a escolha destes gêneros?

Sensibilidade exagerada ao sombrio. Prazer estético pelos textos góticos. O gosto por causos sobrenaturais. Tristeza e melancolia com os desvãos dos mundos. São tantas as razões e possibilidades que poderia escrever um ensaio. Na verdade, escrevi. Chama-se “O Medo, o homem e a literatura” e está disponível online. 

A verdade é que o medo sempre esteve presente em nossa trajetória e creio, pessimista que sou, sempre estará; e como todos os outros sentimentos, também é preciso cantar/ espantar o medo. Da morte, da guerra, da solidão, da crueldade. 

6. Há um certo paradoxo visual nas ilustrações do livro, numa mistura de elementos tecnológicos com a natureza. Estes elementos que nos parecem opostos também são recorrentes na sua obra. Conte para nós um pouco da sua relação com a ficção científica. 

Certa vez, eu li uma frase que dizia, de maneira resumida, que a ficção cientifica investiga a nossa inquietude e como lidamos com o que não entendemos. O futuro, a tecnologia, as coisas invisíveis e desconhecidas, tudo isso me fascina. Desde menina, quando meu pai tentou me mostrar o Cometa Halley, eu ficava pensando que não estaria mais aqui quando os mistérios do espaço se tornassem menores. Também as distopias, mais que as utopias, me fascinam. A existência de outros universos, realidades paralelas. As dimensões do Além da Imaginação. Mas minha paixão pela ficção cientifica não vai muito além disso, é ainda o ser humano que me fascina. Para escrever um bom texto de ficção é preciso pesquisar, estudar, mergulhar nos temas, entender e respeitar as questões da Física, da Matemática. Certa vez, passei alguns meses pesquisando sobre nanotecnologia para escrever um conto. Mas no geral, minha ficção cientifica é simples, poética, imaginativa. Sutil. Em “Epitáfio”, um dos últimos contos do livro, há uma sugestão de viagens no tempo, mas muito mais que isso, há o medo, a violência, as camadas sociais. 


7. No conto “Alaridos”, um menino protagoniza o encontro com um pássaro azul. Por que narrar sob a perspectiva das vivências infantis?

Uma criança, uma bacia, os meses secos de Campo Grande, a pandemia e a aulas em casa, tudo isso está presente em Alaridos. O mundo lá fora, o mundo lá dentro. A melancolia. Mesmo não sendo um texto para criança, é o olhar sensível e curioso da criança que melhor captura as nuances do mundo. 


8. Por que microficção, micropoesia e fantasmagorias? Em especial, conte para nós sobre os Scifaikus.

Pode-se dizer que o scifaiku é o haicai da ciência, da ficção cientifica, da tecnologia, mantendo algumas características do haicai tradicional. Primeiro, precisamos lembrar que o haicai exige alguns aspectos fundamentais: a brevidade, o momento presente, a métrica, a presença do kigo ou elemento da natureza, o espirito zen. Muitos mestres eram também peregrinos, registrando em haicais, cenas e paisagens de suas viagens. Eu li muito sobre as peregrinações de Basho e seus haicais belíssimos. Quando conheci o scifaiku, que para alguns talvez não sejam haicais, fiquei fascinada. A tecnologia devora a natureza? A tecnologia pode evoluir e caminhar com a natureza e não ser exatamente ela a sua predadora? Como seria o ambiente natural de um astronauta, em outra dimensão, em outro planeta, com seres extraterrenos? Eis o haicai científico, a poesia da ciência, mas que ao meu olhar, se aproxima do miniconto, da poesia especulativa, da poesia fantástica. Eis como surge o meu peregrino, o viajante das estrelas e seu caderno de notas. Não há como não se enamorar da ideia do encontro de uma libélula com um robô. Das dificuldades de uma nave em pleno espaço. Do alienígena que se recusa a caçar uma criança humana, em “Primeira temporada de Caça aos Bípedes”. O minimalismo é fascinante, mas as fantasmagorias desse livro se apresentam justamente para mostrar os contos maiores, as experimentações com a linguagem. 


9. Os temas relacionados ao cotidiano também são recorrentes no livro, como por exemplo em “Epitáfio”, no qual trata sobre violência contra a mulher, ou em Acesso 4.7, nas memórias preservadas de alguém que sonha com um pão. Como se dão esses momentos narrativos?

Epitáfio é um dos meus contos favoritos do livro, pois foi um dos mais difíceis de escrever e ao mesmo tempo, não sei se consegui meu objetivo. A figura do homem honrado, admirado, porém, que esconde muitas vezes crueldades contra a mulher, contra a família é feita de camadas. O que um epitáfio pode revelar sobre Caesar, esse brilhante cientista, o que ele realmente desejava com suas pesquisas? Eu desejava escrever sobre isso, sobre a face que algumas pessoas assumem em público e as faces que revelam na intimidade. Em Acesso 4.7, escrito em momentos tão tristes da pandemia da Covid 19, imaginei as memórias de uma mulher comum, sonhando o pão do dia, a normalidade do cotidiano, sendo investigadas em um futuro remoto e improvável. 


10. Tem algum texto preferido no seu livro? Qual? (transcreva aqui para nós) E o que o torna tão especial?

Escrever os textos desse livro me proporcionou tensão, mas também diversão, leveza, curiosidades. Eu trouxe algumas experimentações entre linguagem, personagens e temas. Não tantas nem tão ousadas, confesso, porém divertidas. Entre zumbis, sereias que sonham asas, androides cuidadoras, robôs que temem a chuva, há também homens sagrados que pescam o sol, fantasmas em férias, crianças com saudades de suas avós que já partiram para outros mundos e cadeiras de balanço que se movem sozinhas. Tudo dentro de uma estética velada, um pouco surreal. Também trouxe alguns textos escritos há algum tempo, que se alinhavam com essa proposta. Não tenho um favorito, mas hoje, talvez um dos meus favoritos seja um minimalista, sem título e todo melancolia, escrito há muitos anos, mas que sempre fala comigo sobre solidão, pertencimento e caminhos. 

 

E o minotauro, tão longe do labirinto

Sentia mesmo era falta da solidão.






 


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