Resenha do livro "Palavras Póstumas" de Diana Pilatti

 


Resenha escrita por Mariana Belize e publicada no site "Literatura Íntima". Confiram:


“aos vermes/ minha carne fêmea”: Palavras póstumas, de Diana Pilatti

 por Mariana Belize


O livro Palavras Póstumas, escrito por Diana Pilatti, é o volume 5 da II Coleção de livros de bolso do Mulherio das Letras, publicado pela Editora Venas Abiertas, Belo Horizonte/MG, 2020.

Diana Pilatti é paranaense de Foz do Iguaçu, mas mora em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, desde a infância. Professora da rede pública e poeta. Formada em Letras (UCDB) e Mestre em Estudos de Linguagens (UFMS). Autora dos livros Palavras Avulsas (2019) e Palavras Póstumas (2020). Organizou a I Mostra Poetrix (2020) e participou de várias coletâneas e publica poesia nas redes sociais @dianapilatti e no blog dianapilatti.blogspot.com.


uma réstia de sonho

candeia na minha alcova

a esperança fraturada

reluz

sobre meu corpo-lúteo

sob o travesseiro

alguns versos idílicos

e na vertigem da madrugada

cá não estou mais


Nos poemas, a poeta escreve sobre sobre mulheres vítimas de relacionamento abusivo. Aparecem também questões sobre a solidão, medo, violência psicológica e física, e feminicídio. Além dos temas difíceis, a escrita avança sutil e sinteticamente. Isso significa que os poemas são traçados de forma que não banalizam, não vulgarizam e tratam das dores dessas mulheres sem espetacularização nem degradação em suas imagens. As feridas se apresentam pelo verso quebrado, pela importância central da forma. A violência torna-se imagética, metafórica e toma um aspecto ainda mais cruel.


não sei

meus sonhos minha voz

já esqueci meu gosto

meu verso meu verbo

só sei o seu… e o seu só-mente

meu corpo?

você já o tem

ora permitido ora objeto

meu sangue?

já o tomou

à força a punho e lágrima

o que mais você quer de mim?

a minha alma?


“O fato de que sou escritora: uma mulher escritora, não uma dona-de-casa que escreve, mas alguém cuja existência, em sua totalidade, é comandada pelo ato de escrever.”, Simone de Beauvoir

A leitura do livro deve começar atenciosamente pela epígrafe, onde a escolha pela frase de Simone de Beauvoir indica uma espécie de ironia, já que a eu-lírica dos poemas reflete o caminho oposto ao dizer beauvoriano.

Essa mulher que escreve suas Palavras Póstumas não consegue ser poeta ou escritora em tempo integral, embora sua existência no texto seja dada pelo ato da escrita. Ela escreve entre os cuidados que dá às filhas, os trabalhos da casa, os serviços da cozinha e a violência que sofre do marido. Sendo assim, é no mínimo irônica a contradição entre a frase de Simone e sua posição na obra. Principalmente porque Beauvoir faz questão de dizer que não é uma dona-de-casa que escreve e aponta para o poder de se dedicar totalmente à escrita e ao exercício da filosofia. Aí temos então uma exposição de sua posição privilegiada, em muitos sentidos, com relação à eu-lírica que compõe os versos do livro.

Para além dessa reflexão, há um extenso processo de diálogo e reflexão a partir do encontro entre vozes femininas na escrita do livro, a partir das epígrafes e citações. Esse diálogo é pontuado também no estilo, onde as formas dos poemas também conversam com estruturas poéticas presentes na modernidade, na Antiguidade grega, por exemplo.

Um detalhe a ser ressaltado é que os poemas podem ser lidos isoladamente, sendo assim cada um deles um fragmento de uma memória/ vivência individual feminina. Mas é possível uma leitura de maneira que construam uma narrativa interna onde há uma eu-lírica apenas. É por isso que indico sempre a presença dessa voz única que pode ocorrer e carrega essas memórias. Memórias póstumas.

Essa escolha da poeta gera uma reflexão profunda para a leitora. Ao mesmo tempo em que as situações, emoções e acontecimentos presentes nos poemas podem gerar uma identificação com a leitora, também a construção interna (e narrativa que une os poemas num único fio, uma vida) também traz à essa leitora uma perspectiva desoladora sobre nossa busca por liberdade diante das opressões do patriarcado.

Ao trazer a violência através da linguagem simbólica, a eu-lírica revela a sombria perspectiva da violação psicológica e, para além disso, de uma subjetividade que é agredida. Não só o corpo é destituído de poder sobre si e é passível de violência física, mas o mundo interior dessa eu-lírica é profundamente transtornado, fragmentado e assim, sua sensibilidade é ferida no mais alto grau… bem como sua poesia, sua busca pela escrita, sua tentativa de construção pela palavra nos remete a três pontos importantes do livro. O primeiro é a reconstrução de sua subjetividade, como também de seu mundo interior, a partir de seus próprios métodos, formas e palavras. É sua reconstituição simbólica que está em jogo.


olha o que me fez fazer!

outra vez

já não estranho mais

esse sabor hemácio na língua

lavou a louça

e meu silêncio arranha as paredes da cozinha

socorro

inaudível

outro sonho

translúcido

pelo ralo


O segundo ponto é denunciar. Vemos que, durante os poemas, o silenciamento é uma das armas que o agressor utiliza. Além do gaslighting, o homem utiliza-se de máscaras sociais onde aparece como “o bom marido” e só no espaço doméstico é que revela sua verdadeira identidade, aquela que é revelada nas ações de violência que perpetua na vida daquela mulher. Sendo assim, é denunciando o silenciamento através da escrita de suas palavras póstumas que a eu-lírica tem a oportunidade de elaborar os acontecimentos e denunciar seu agressor. Ela conta sua história, a história de muitas!, através dos versos que tece.

O terceiro ponto é o diálogo construído com as múltiplas vozes femininas que são nomeadas durante os poemas. Sendo essa a forma como a eu-lírica demonstra o fato de não estar tão só. Ainda pode contar com as outras mulheres, nesse trabalho de linguagem que é o livro.

É importante destacar o título: “Palavras póstumas” traz à leitora desde seu início a presença da morte. E principalmente demonstra que nos poemas encontraremos a(s) voz(es) póstuma(s). Daí a força que cada poema carrega. Primeiro, no construto sintético que a eu-lírica nos fornece. A poesia convergindo cada vez mais para o silêncio, a quebra, o símbolo. O sofrimento é contido nas letras, na forma, em cada palavra e nas entrelinhas. E esse é um dos maiores méritos desse livro. Ao construir-se na síntese, concentra a potência do dizer e torna o fragmento uma chave de leitura múltipla, polifônica e dialógica. Quanto maior a síntese, maior a concentração da angústia que pesa em cada palavra. E em cada silêncio, quantas vidas cabem?

Quanto à forma, os poemas possuem uma construção sonora que, embora não procure a rima, carrega nos sons a sua tessitura mais sutil e, ao mesmo tempo, mais crivada de beleza.


palavra etílica

verbo coágulo

conjuga

tua boca ferina


Outros exemplos como esse aparecem por todo o livro, sendo poemas para serem lidos senão em voz alta, mas de alguma forma sussurrados a fim de que sua potência verbal não se perca no silêncio das páginas.

Acontece também uma espécie de ponto de virada no livro que é quando a eu-lírica inicia um movimento de reflexão, através dos versos, sobre a história das mulheres. Perguntas como “O que é a mulher?”; “quem habita o corpo feminino/dele tem real propriedade?”. Aparecem também reflexões sobre o exercício da escrita e como ela se dá nos intervalos de um cotidiano turbulento, surgindo como um espaço de liberdade, diálogo consigo mesma, com outras mulheres e onde ela elabora a si mesma, ouvindo sua própria voz, numa tentativa de não enlouquecer diante das circunstâncias. A escrita é um trabalho de descanso e pensamento. Já que sua palavra, na rotina, é amordaçada. Amor-daçada. Conforme disse e repito: o trabalho com a palavra nesse livro é primoroso. Não só pela escolha dos temas, mas pelo que a construção poética engendra.

O homem, neste livro, é apresentado sem sua máscara de civilidade, sem sua pretensão de racionalidade, sem qualquer resquício de “príncipe encantado” – a não ser como farsa. Esse homem não é um monstro, nem um ser incomum que surge das sombras como um pesadelo ou num filme de terror. É um ser humano comum que, diante do privilégio que recebe de uma sociedade moldada à sua imagem e semelhança, transforma as mulheres em serviçais, tira delas seu direito de escolha reprodutivo, exercendo sua violência muito bem calculada com requintes de crueldade.

É um torturador, sádico, estuprador. Um marido, um cidadão de bem. É um homem a banalidade do mal. Uma pretensão totalizante, uma “vaidade-algoz”, que corrói a mulher com sua “voz-açoite”, portadora de desdém, cinismo, raiva.


senti a típica rudeza fálica

entrando no meu corpo

indiferente

sem sabor


| obrigações sociais |


lembro do menino de olhos claros que uma vez elogiou minhas tranças:

refúgio-infância


Termino esta crítica alertando para o fato de esta ser a primeira resenha sobre este livro. E aqui também reitero algumas questões que venho desenvolvendo conforme caminho por esse espaço que é a crítica literária. A primeira questão é: por que existe ainda essa obsessão por livros e autores do eixo RJ-SP? A segunda questão é: até quando xs críticxs continuarão a dar espaço, voz e palco às mesmas figuras? A terceira questão é: quando autorxs de outros estados começarão a ser lidos como literatura brasileira contemporânea e não apenas através de seus “nichos de mercado”?

Perguntas incômodas como essa é que movem o trabalho desta que vos fala. Que essa seja a primeira de muitas resenhas sobre este trabalho de alta qualidade que Diana Pilatti construiu. Seu livro é um dos melhores do ano no campo da poesia. E sobre as questões que propõe e os temas complexos que aborda já deveria estar na ementa de universidades que contem com estudos de gênero. Não é apenas um trabalho primoroso com a linguagem, coisa rara nos nossos dias, mas também trata com respeito e dignidade as dores de tantas mulheres. Diana Pilatti é uma grande poeta e espero que continue em atividade, mesmo não contando com a atenção devida da crítica. Erro daqueles que focam no nicho, no modismo, nos prêmios, nos assuntos da moda e no número de seguidores.

Que sirva de alerta. Diana Pilatti já tem sua obra-prima: Palavras Póstumas.


Mariana Belize 

é Mestra em Literatura Brasileira pela UFRJ 

e publica crítica literária no site Literatura Íntima.



Clique aqui para ler a resenha direto no site Literatura Íntima


O livro Palavras Póstumas é o 5º volume da II Coleção de Livros de Bolso do Mulherio das Letras, publicado em 2020 pela Editora Venas Abiertas. 

Clique aqui para adquirir o livro Palavras Póstumas ou aqui para ler alguns poemas do livro, disponíveis na página da autora.. 

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