"Intrépida Verônica" conto de Eva Vilma

 

Intrépida Verônica

- E eu? Também não careço cuidados? Não tenho meus medos e dores? Não tenho as vontades de esquecer tudo por uns minutos que seja? Pensar em mim, tratar as feridas? 

Tonalidades de voz de Verônica tão logo seu rosto cansado vem raiar na tela do celular. 

Pudesse, eu correria até ela para o abraço que ampara, o beijo no rosto e as palavras de acalanto sopradas de pertinho no entre lábio que sorri. Faz tempo, não se sabe o que é isso! O mundo se recolheu em si. Nós? Em nossas casas. E já não tendo o que olhar nas casas, e já não tendo o que olhar das janelas, foi brotando jeito qualquer de parar e mirar bem para o dentrinho da gente. Coisa difícil! O vírus agora castiga. Nega o abraço e a contemplação do sorriso. Foi nascendo precisança de aprender a sorrir com os olhos. No entanto, Verônica agora não sorri.

Verônica é um misto de forças tantas com uma capacidade única de reinvenção diante das pequenas mortes que atravessam sua caminhada. Ícaro, tivesse a oportunidade de observar sua resiliência, de aprender com ela, e o sol não teria sepultado seu sonho forma tão repentina.

Queria dizer isso a ela!

Verônica é dessas mulheres com fome de vida. Fome de festa. Dessas que juntam nesguinhas de instantes bons pra fazer valer a pena. Pra não apequenar nesse mar revolto que vai assombrando a gente.

Ela ali do outro lado da tela, olhos brotando rios. Rosto experimentando o correr das águas. Mesmo rosto que anuncia suas origens. Escreve a palavra luta no tom chocolate da pele. Cachos do crespo invocando liberdade, caçando balanceio no drible ao coque. Olheiras. Esse murchamento de olhos não dormidos. Coisa de quem corre exageros o pensamento. De quem não ousa piscar para o caos. Pisque, e ele te devora! Sempre foi assim. Verônica? Não pisca. Não descansa vigília. Ela escreveu para dentro de si que a luta não dá trégua. Batalha sim! E é isso que faz agora. Bate em retirada por alguns minutos dessa batalha de força travada desde sempre: ela, mulher e as construções sociais para o ser feminino. Ela, mulher negra e o racismo. Lembro agora um trecho de Mia Couto “a paz tem outros governos que não passam pela vontade dos políticos.” Para Verônica, mulher negra, a paz tem outros governos que não passam pela vontade da sociedade eurocêntrica e patriarcal. Tira seu capacete Adrian e expõe por instantes, os olhos aos estilhaços. Mais que isso, mostra-os. Águas transparecendo cansaço e dor. Atira para longe a armadura transformer. Está cansada! A vida é essa milésima guerra mundial. Ela? sobrevivente. 

 - E eu? Acaso não sinto? Não clamo por toques? Tocar é tão pra adiante da mão no corpo! Acaso não careço do toque de palavra aos ouvidos? O toque de um olho em meu olho? Acaso não mereço ser tocada por algo que me ponha de novo cara a cara com minha essência? Tem aquele livro da Clarissa. Aquele sobre mulheres... que fala de acordar a gente. Acaso não mereço acordar o que vai dentro de mim? Me ser…

Sou eu quem pergunto. Metamorfoseio-me espelho de Verônica, porque há um fio transparente que liga as dores de todas as mulheres. Umas maiores, outras menores. Todas dores! Somos eternamente grávidas de luta. E o mundo teima em não querer dar à luz. Desenho isso tudo na antessala dos meus pensamentos. Torno ao rosto de Verônica na tela, e já é outro. Conta-me, sorriso largo:

- O mais importante é isso mesmo, minha amiga! Olhar para as coisas boas. Pois acredita que agora não pego ônibus todo dia pra ver João no hospital?! Salinha de casa, com a cama alta e a trenheira toda ajeitada pra cuidar do jeitim da gente, é outra coisa! E acamado, não bebe. 

Eva Vilma