"Tratado de Retinas" Conto de Febraro de Oliveira

Foto: Acervo do autor.

 

Tratado de Retinas


Tratei de percorrer a ameaça do pranto na retina. Da casa vazia, dos móveis fantasmas — um olhar à cima de mim mesma:  um vazio imenso causado pela falta da palavra que por sua vez se faz a mesma anunciada outrora. Por minha vez me fiz a mesma anunciada, de quando não me escolho, de quando não me caio. 

Ainda a sustentar os grandes desejos que percorrem essa casa vazia, estes móveis fantasmas. Por me sentir embriagada num grande O, percorro a ameaça do pranto na retina. Na avenida, ainda a me repetir e a me fazer repetição. 

Porque eram homens: e estes se dizem por si só, carregando nome próprio, substantivo, adjetivo e advérbios. Mas porque era eu, era você. E por ser nos fazíamos apenas sendo, e a liberdade de sermos coisas que existem apenas pra ser coisas: essa liberdade não tem jeito não essa liberdade é uma ave de rapina que atravessa a cidade só pra atravessar a cidade, sem nenhuma fome, além dessa: a nossa própria. Fome de nosso nome, que nos dá título, função, mercadoria. 

Pois antes era Paulo — e agora Pedro. Como os apóstolos à perseguir o mandato à cruz e Judas ainda à espera da traição. À caminhar todos, lado a lado, com faces desconexas carregando na garganta o mesmo líquido de canários. 

Aos outros, apenas os nomes mudavam. Ainda havia reconhecimento nos traços dos outros. Se Judas e Paulo, e mesmo Pedro, caminhavam seguindo o mesmo desejo, porque não Jesus à trair-lhes? Por que o mesmo, ao olhar o rosto abstrato, não os abandonou costa à praia? Entrando na água e, agora, não mais flutuando: afogando em si? 

O que lhes diferenciava além do não-desejo? Caminhei rumo à mim mesma. Brilhava nos dedos a perdição própria, pois quero lhe dizer, Paulo, que pra mim, seu nome sempre foi o mesmo. 

E o desejo que carrega, embora o mesmo que o meu, nos levará à um lugar só. Pois nós não somos os traidores, embora em nossa face a abstração seja a mesma, mas sim aquele que abandona a guerra e se estende na cruz.

Paulo, acho que te amo porque você soube que nesse caminho, nessa estrada turva e escura, não há uma estrada com borboletas, sonatas e luar, mas uma longa solidão nossa. Paulo, esse misticismo bíblico que criei é só pra te dizer que eu e você, redundante nós dois, somos feitos das mesmas substâncias das batatas e das baratas.

Na avenida, estava marcado: meu rosto no espelho, o tratado das linhas imaginárias cruzando a linguagem de se ter um rosto. Porque tenho um rosto: e não há nada mais cafona. Porque o outro chega e me olha: de rosto, em rosto. Caindo aqui, no rosto. no rosto mi caio/ no rosto mi deito com rosto mi levanto/ com rosto eu calo com rosto eu canto/ eu bato um papo eu bato um ponto/ eu tomo um drink eu fico tonto, esse meu rosto que era pra ser Chacal - mas é o meu, intitulado, nomeado. 

Esse rosto meu: avesso de atravessamentos da vida inventada cruzando as marcas de mim. Fico perguntando se esse é o rosto de quem já amou, se esse rosto, que é o meu, já foi de outro. Quando nasci: qual era meu rosto? Quando a nomeação veio, o rosto veio também? Da cafonice de se ter um rosto, queria era me ter num rosto, um rosto, esse meu desnome, quero um rosto que não seja meu, quero um rosto para chamar de meu, quero um rosto para levar a passear, quero um rosto para embrulhar de presente, em papel de presente, e dizer: toma, é meu. Quero um rosto sem nome à mim, quero um rosto nonada, um rosto nonoutro, mas meu. Eu quero um rosto que seja um rosto, um rosto que vá além das fronteiras imaginárias e da linha imaginária. Eu quero um rosto — apenas.

Ao princípio do verbo, era manhã e estava perdida. Antes, ainda tentava me encontrar com mapas, bússolas, GPS e até seguia as formigas, que num abuso de petulância barulhenta, escondiam-se abaixos dos sapatos meus, esmagadas. Mas agora, completamente sozinha olhava para o sol: que nada dizia, apenas uma luz gigantesca. E, no caminho de iluminar-se, do sol brotavam-me desejos. Dessa vez (e não mais além) abandonaria tudo. Tropeçando no arrumar de malas, marido, filhos, sim, filhos, dois, minúsculos, deixados também, mais ainda — além, os retratos feitos em 1998, sim, abandonados, abandonadissímos. Tudo em abandono sem retorno algum. Porque me fiz na hora de ir-me à avenida, e por ser hora, andava. Ainda em algumas pedras, gatos pingados de tropeços, a espera de um ônibus invadir o corpo, e eu mesmo deixaria que o mesmo levasse tudo, marcando o chão de mim mesma. Porque esse era o desejo 

o chão não apenas como cadáver 

além — 

marca. 


Febraro de Oliveira

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